São Paulo, 24 de Setembro de 2012

E quem disse que o silêncio não pode dizer, ou até mesmo gritar? Você entenderá o meu distanciamento, meu querido amigo. Entenderá porque escolhi não viver para viver...
Eu fui passar a comemoração de Natal com a Mariana e a sua filha. Naquela noite eu usava uma camisa que a Mari me dera alguns dias atrás, uma camisa de manga comprida, pois desde que descobri a verdade, só usava camisas desse tipo. Cheguei com um sorrisos, abraços e olhares que não eram meus, estava cumprindo um papel do amigo presente, do amigo grato por ela ter me ajudado um dia, mas nada aquilo representava o que eu estava realmente sentindo. Um desconforto monstruoso me sufocava. Já fazia alguns anos que não usava gravata, mas era como se várias delas estivessem em meu pescoço naquele momento.
Foi uma comemoração linda. Estavam presentes a Mariana, sua filha e mais duas outras prostitutas, amigas de Mariana. E eu. Já havia decidido que aquele era o momento de contar a verdade que flamejava dentro de mim, não passaria daquela noite. Comprei para minha... Para a filha de Mariana um colarzinho, simples, com um pingente de uma bailarina sentada, com as pernas cruzadas e com sonhos saindo de sua mente. Para Mariana não comprei nada. Na verdade, encontrei uma caixinha de madeira na rua, muito pequena, e escrevi em sua tampa "A verdade desprende as cadeias do viver, por mais que doa". Ela fez uma expressão de não entender, mas retribuiu generosamente com um sorriso e abraços calorosos.
Já não tocávamos no assunto de um dia termos nos amado, ou algo semelhante a isso. Mas estava impresso em nossos olhos que tínhamos algum receio de tocar nesse ponto novamente.
O jantar havia sido maravilhoso: aquele sabor de comida fresca percorria por toda a minha boca, o molho, o tempero... Era como se eu (re)conhecesse aquele gosto de algum lugar. Mas o que realmente foi importante era o sentimento que eu tinha: aquela comida havia sido preparada para mim, não havia sido feita para outro. O que sobrara ficou para mim. Não, era mais que sabor, estava experimentando de carinho, afago naquela noite. A sobremesa foi um sorvete com amêndoas e calda de chocolate. Cada detalhe havia sido pensado, e nada ficou para trás. Deixei metade daquele sorvete no recipiente quando toquei no braço da Mariana e a chamei para conversar. Deixei mais que sorvete à mesa: deixei, talvez, uma tranquilidade que eu poderia ter, partindo para a liberdade.
As lágrimas quase que despencaram dos meus olhos quando, sorrindo, ela me perguntou se eu estava bem. Falei que sim, mas não sabia se ficaria. O sorriso que saíam dos seus lábios e olhos deu lugar à expressão de dúvida.
Comecei lhe contando como fui parar nas ruas. Ela sorriu discretamente e disse que já sabia dessa história. Disse-lhe para que prestasse atenção em alguns detalhes. Eu saí da minha casa após ver a minha esposa na cama com meu patrão e sua esposa. Saí desatinado, perdido, mas voltei naquela noite, (muito) mais tarde para despedir-me dos meus filhos. Para o meu menino, deixei uma bola, para ela, uma boneca. Nesse momento, a Mariana olhou para mim, no fundo dos meus olhos. Seus lábios ameaçaram dizer algo, mas não permiti, precisava terminar de dizer tudo.
Continuei dizendo que ela havia sido um anjo enviado por Deus para me ajudar, já haviam se passado alguns anos, mas era como se eu tivesse acabado de chegar às ruas. Lhe lembrei da vez que ela foi espancada e a levei para o hospital. Naquela noite eu comecei a recobrar (ou seria cobrar?) a verdade. Vi que na mão dela havia uma marquinha de nascença, e que eu me lembrava de ter visto a mesma marca em algum lugar. Num outro dia em que eu tive um surto de loucura fui tomar banho em sua casa; ali, com aquela água percorrendo meu corpo arrancando a sujeira e revelando a verdade, descobri que aquela marca que eu vira nela estava impressa em mim, no mesmo lado direito, no mesmo formato. Havia sido produzida do calor dos meus braços envolvidos no corpo de sua mãe, ainda quando éramos casados. Levantei a manga da minha camisa e a mostrei.
Pior que se despedir da minha filha naquela noite de traição, foi ver os olhos de desesperos da Mariana naquele momento. Comecei a chorar, a voz embargou. Nesse momento não recebi seu abraço, antes, abraçou-se a si mesma; talvez numa tentativa de agarrar-se à realidade... Como se o tempo estivesse congelado, olhei para o lado e pude contemplar a filha da Mariana brincando com as outras duas prostitutas, todas alegres e sorridentes. Mariana abaixou sua cabeça. Foi nesse momento que eu disse seu nome. "Dora...?". Exatamente aí houve uma fusão entre aqueles dois ambientes antagônicos dentro daquela casa: minha filha; minha amada. Seu grito de "Não!!" ecoou dentro daquelas paredes, fazendo os lugares de alegria e desespero serem somente um.
"- Filha, pra mim também é desesperador, estou tão perdido e decepcionado quanto você..."
"- Não, não, não..." Foi tudo que saiu dos seus lábios... 
Ah, como é cortante só relembrar daquela noite. Saber que abandonei minha filha, que me apaixonei por ela, e que ela embarcou no mundo da prostituição para sobreviver. E mais, meu querido amigo, eu era avô! Haviam tantas perguntas, tantas dúvidas e sentimentos embebecidos e entrelaçados em si. Minha pequena Dora cresceu... 
Já não tenho coragem, nem forças para continuar por hoje, meu escudeiro...
Deus meu, Deus meu, parece que estou perdido, sem direção. Deste-me forças para contar a verdade, mas, por favor, revele-me uma luz no meu caminho, por mais fraca que seja, mostre-me e eu a seguirei, pois tudo que consigo ver é que nada vejo.